
BRASÍLIA (Reuters) – Situada hoje no centro da polêmica sobre identidade de gênero, cônjuge – palavra tradicionalmente tratada como masculina – entrou na Justiça para obter sua legalização como substantivo de gênero fluido (o cônjuge, a cônjuge). Com isso, ela pretende alcançar a mesma condição da palavra personagem, que, após várias gerações sendo rotulada de sobrecomum feminina, é hoje reconhecida por lei como comum de dois gêneros.
Após ser tratada por tanto tempo na escola como sobrecomum e obrigada por normas sociais a interagir apenas com artigos e adjetivos masculinos, cônjuge resolveu aderir ao identitarismo gramatical por não se ver representada pelo sobrecomunismo, liderado pelos sobrecomuns ser, sujeito, ente, indivíduo (que se assumem exclusivamente como masculinos) e testemunha, vítima e pessoa (que só se assumem como femininos). Vários desses sobrecomuns têm seu gênero predestinado até hoje por gramáticos e dicionaristas. Esse é o caso, por exemplo, da palavra modelo, que, até para se referir a manequins como Gisele Bündchen e Fernanda Lima, se vê obrigada a se declarar masculina. Cônjuge partilha desse mesmo sofrimento e alega nunca ter se sentido confortável dentro de um único gênero, denunciando as prolixas formalidades em que precisa se estender para se referir a uma mulher: “Pra que me tratar como ‘o cônjuge feminino’, ‘o cônjuge mulher’, ‘cônjuge do sexo feminino’, quando um simples artigo feminino me identifica da forma mais objetiva e precisa possível? A cônjuge!”, questiona.
Após assumir o caso e consultar legislações e jurisprudências, o advogado de cônjuge constatou que – tal como ocorreu com personagem – nem historicamente esse rótulo de sobrecomum se sustenta: “Ela veio do latim, língua em que sempre foi substantivo comum de dois gêneros. Ingressou no português no século XIX, apresentando gênero feminino tanto no Brasil quanto em Portugal. Tanto que, naquele mesmo século, em sua Grammatica Portugueza, Júlio Ribeiro dava cônjuge como comum de dois gêneros”, informa.
Apesar disso e de tantas obras de referência divergirem sobre a classificação do substantivo, acabou prevalecendo a visão conservadora segundo a qual o gênero masculino de cônjuge – como toda regra gramatical – é uma predestinação divina que não pode sofrer mudança. Ela predomina no ambiente religioso, concurseiro e até jurídico, onde o tratamento se tornou ainda mais cruel e desumano, consagrando ofensas como “cônjuge varoa” e “cônjuge virago”. Hoje em dia, até a Academia Brasileira de Letras nega, por meio da versão eletrônica do Volp, seu gênero fluido, embora todas as edições do vocabulário publicadas até hoje (1981, 1998, 1999, 2004 e 2009) registrem cônjuge como comum de dois gêneros. “Além de um retrocesso, é uma tentativa criminosa de apagar a verdadeira identidade da palavra”, denuncia o advogado.
Em sua defesa, a palavra conta com o apoio de grandes juristas, como Adalberto Kaspary, segundo o qual “não há razão para se continuar dizendo ‘cônjuge varão’, ‘o cônjuge marido’, ‘o cônjuge mulher’ e muito menos ‘cônjuge virago’, à maneira tradicional”; e José Maria da Costa – autor do Manual de Redação Jurídica –, que, após extenso e exaustivo levantamento bibliográfico, conclui estar “autorizado o uso de o cônjuge e a cônjuge”. Esse mesmo jurista prevê que, para esse caso, o STF deve invocar o princípio in dubio pro libertate: diante da divergência entre autoridades e referências, deve-se conceder liberdade de emprego ao usuário: o cônjuge, a cônjuge.
O julgamento do recurso, marcado para a tarde desta terça, deve agitar as redes sociais e também as ruas. Em passeata rumo ao STF, carregando faixas com os dizeres “Deus criou cônjuge como sobrecomum” e “Identidade de gênero gramatical é ilegal e imoral”, professores tradicionalistas, membros de bancas examinadoras e concurseiros esperam que a tradição seja preservada a qualquer custo, apesar da realidade ao redor não os favorecer.
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