
RIO DE JANEIRO (Reuters) – A identidade de gênero gramatical entrou em pauta no primeiro debate entre presidenciáveis e se tornou o grande tema da noite, sendo motivo de discussões acaloradas entre os candidatos à presidência da Academia Brasileira de Letras (ABL). Na primeira parte do debate, houve mais concordâncias do que confrontos. Bechara, Luft, Cegalla e Rocha Lima concordaram sobre a consolidação, na língua culta, da palavra ‘presidenta’; Napoleão e Sacconi denunciaram registros da palavra ‘cônjuge’ como substantivo de dois gêneros – e não sobrecomum, como rezam as tradições da família culta – em dicionários, gramáticas e inclusive no Vocabulário Ortográfico da ABL; já os dicionaristas Houaiss e Francisco Borba questionaram por que não descriminalizar logo o uso de ‘(o) cataclisma’, já que é cada vez menor o número de pessoas que, ainda influenciadas por manuais desantenados com a língua, insistem em usar ‘(o) cataclismo’, além de não haver sequer, nesse caso, mudança de gênero da palavra. A discussão só esquentou mesmo quando Celso Luft tirou do sério Napoleão Mendes de Almeida. Este, líder das pesquisas de intenção de voto entre o eleitorado conservador, vinha sendo poupado no debate quando, numa pergunta sobre gênero, praticamente mandou o gramático gaúcho se calar. Tratava-se do gênero da palavra ‘personagem’. Luft, um dos mais progressistas entre os presentes, questionou se era mesmo verdade que, em sua Gramática Metódica, Napoleão diz ser erro o emprego de 'personagem' com gênero masculino, ao que este lhe respondeu: “Mas é claro! Por acaso, referindo-se a Pedro, pode alguém dizer ‘esse pessoa’? Se Pedro é ‘uma pessoa’, ele também é ‘uma personagem’, ora! Personagem não é comum de dois! Tem gênero fixo, feminino: essa personagem, uma personagem, as personagens!” Na réplica, Luft alfinetou o candidato conservador: “Até admito que, no sentido de pessoa, de personalidade, é preferível o gênero feminino. Mas todo mundo sabe que, hoje em dia, a forma no masculino conta com a maioria dos usos no ensaísmo e na crítica literária. O fato é que, na prática, já se consagrou o uso dos dois gêneros: ‘a personagem Capitu’, ‘o personagem Bentinho’. Sério mesmo que você não tem nenhuma consciência disso?” Antes que Napoleão, visivelmente enfurecido, voltasse a se manifestar, Sacconi, outro candidato conservador, solidarizou-se com o colega e interveio na discussão: “É sobrecomum e sempre feminino: ‘a personagem’, ‘uma personagem’! ‘O personagem’ é G-A-L-I-C-I-S-M-O! Em português, toda palavra terminada em -gem é feminina, com exceção de ‘selvagem’, que é comum de d...”, mas foi interrompido por Cegalla: “Nada a ver! Não é só o caso de ‘selvagem’! ‘Personagem’ também é exceção... hoje em dia é usada tanto no feminino como no masculino. Ficar condenando ‘o personagem’ é mero arbítrio... não tem apoio em fatos de linguagem”. O centrista Celso Cunha concordou: “Exatamente, Cegalla. Diz-se, indiferentemente, ‘o personagem’ ou ‘a personagem’ com referência a protagonista homem ou mulher”. Outro candidato do centrão, Evanildo Bechara, se alinhou aos demais, dando alguns exemplos: “‘Personagem’ tem a mesma condição de ‘consorte’ e ‘soprano’... tudo comum de dois gêneros”. Luft aproveitou muito bem o tema para imprimir publicamente em Napoleão a pecha de intolerante, mas o fato é que os adversários mais progressistas demonstram ainda não saber lidar com o conservadorismo linguístico, causa que encontra muito apelo entre (e)leitores fiéis à tradição e inseguros com os crimes de lesa-gramática e lesa-ortografia. Por outro lado, Rosa Laura – primeira pessoa trans não binária candidata à presidência, representante da chamada terceira via gramatical – chamou a atenção para o fato dos candidatos discutirem tanto sobre gênero e não terem abordado, em nenhum momento sequer, a falta de normatização gramatical para inclusão de pessoas não binárias: “Todes vocês aí repisando o óbvio da gramática sexista, tratando de questões que já deviam estar superadas há décadas e que só atendem pessoas cis binárias, enquanto fecham os olhos pra realidade das novas gerações, nesse binarismo que não representa mais toda a população. Ninguém entre vocês se importa com a discriminação das desinências marcadoras de gênero, que são exclusivistas e carregadas de sentidos que ferem a identidade de muites. O masculino genérico finge incluir pra, ideologicamente, excluir! Enfim, a hipocrisia acadêmica. A única coisa imortal na ABL é o cinismo”, disse. Como sempre, houve muita discordância sobre o vencedor do debate entre espectadores, que dizem ter sentido a ausência do dicionarista Aurélio Buarque de Holanda – condenado por corruptela.
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