Baseadas numa lógica simplista que pretende subordinar o certo e o errado ao literalismo, certas pessoas inventam regras e acabam criando condenações para usos existentes há séculos na língua culta, tratando locuções como expressões matemáticas e a gramática como ciência exata. A seguir, denunciamos duas fake news oriundas de um grande vício de nossa cultura gramatical: o logicismo.
“Em virtude de” tem há séculos o significado de “em razão de”, “devido a”, “por causa de”, “em consequência” etc. associado a qualquer motivo (bom, mau, neutro). Apesar disso, em algum momento, alguns devotos da etimologia passaram a defender a ideia de que tal locução NÃO pode estar atrelada a causas de natureza negativa, alegando que a palavra virtude tem, em sua origem, sentido positivo, significando “boa qualidade moral”, e que por isso seriam erradas construções como “em virtude do falecimento”, “em virtude do incêndio”, “em virtude da crueldade” etc.
No entanto, essa alegação não encontra fundamento em fatos da língua. Em alguma utopia, seria possível decretar todo esse rigor lógico; já no mundo real, a utilização dessa locução com sentido negativo é tão consolidada que trocentos dicionaristas a corroboram, citando exemplos de seu uso em contextos adversos e desagradáveis. Os gramáticos, por sua vez, dão esse emprego como correto:
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“Em virtude de. Essa locução pode ser usada mesmo quando a causa é má, o motivo é ruim.” (Dicionário de Dificuldades, CEGALLA, 2009)
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Aliás, são os próprios gramáticos que – vejam só! – empregam a locução com sentidos que nada têm de positivo...
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“Há um emprego condenável do demonstrativo ‘mesmo’, em virtude de terem criado, à custa de ensinamentos de origem duvidosa, incompreensível aversão às formas a ela, dela, para da etc.” (Gramática Metódica, NAPOLEÃO, 1999)
“... em virtude da doença...” (Moderna Gramática Portuguesa, Evanildo BECHARA, 2009)
“A obra atrasou-se em virtude de uns operários se terem acidentado.” (Nova Gramática, CELSO CUNHA, 2017)
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“A palavra pletora – que designa excesso de humores ou de sangue, mau estado em virtude desse excesso – é paroxítona.” (Questões vernáculas, NAPOLEÃO, 1981)
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“[...] em virtude da decadência do nosso ensino [...]” (Questões vernáculas, NAPOLEÃO Mendes de Almeida, 1981)
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“[...] pânico, em virtude do susto que causava o deus Pã quando aparecia entre os mortais.” (Questões vernáculas, NAPOLEÃO Mendes de Almeida, 1981)

De forma análoga, outros afirmam que não faz sentido usar “graças a” com valor negativo, por ser “uma locução prepositiva causal de valor positivo”. Esse raciocínio desenterra a etimologia de “graça”, palavra com significado originalmente positivo ( = favor, mercê, agradecimento), e até se justifica na gramática francesa (em que a locução grâce à é empregada apenas em contextos positivos). De fato, tradicionalmente, seu uso com sentido positivo se mostra mais frequente: “graças a Deus”, “cair nas graças”, “estado de graça”, “ela é uma graça” etc. No entanto, estamos diante duma construção que se consagrou em nosso idioma como mera locução prepositiva de causa, qualquer que seja essa causa – positiva, negativa, neutra, irônica etc. –, não havendo nada, nadica mesmo, que um dia tenha impedido seu emprego em tom desagradável, ruim, debochado ou mesmo neutro. Isso mesmo: os dicionários (Houaiss, Aurélio, Borba, Aulete, Michaelis etc.) tratam essa locução com o sentido de “por causa de”, “devido a”, “com o auxílio de” sem lhe determinar qualquer valor positivo, fato que podemos constatar em nossa literatura:
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“Quantas vidas, que a natureza dotara de prendas excelentes para a felicidade própria e o bem dos seus semelhantes, não se consomem, graças à tirania dessa paixão absorvente, no descontentamento, na revolta, na inveja, na malevolência habitual!” (Antologia, Ruy Barbosa, Antologia, 2011)
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“Graças ao concurso de tantas deslocações e deformações, o indivíduo lograra converter-se, muito a seu salvo, em bainha de um perigoso instrumento de guerra.” (Antologia, Ruy Barbosa, 2011)
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“Na entrada da Estrada Real, no canto da Rua José Bonifácio, graças a um buraco que a Light deixa entre os seus trilhos, uma caleça partiu o eixo e, dos seus passageiros, um quebrou uma das pernas.” (Vida Urbana, Lima Barreto, 1915)
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“A reputação é a opinião alheia que só nos cria embaraços, mesmo quando é lisonjeira. Todos nós somos, graças a ela, vítimas uns dos outros.” (A Bela Madame Vargas, João do Rio, 1912)
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Não há, pelo menos entre os gramáticos contemporâneos mais conhecidos, quem condene o emprego dessa locução com significado diferente do positivo. Tanto que, a esse respeito, diz Maria Helena de Moura Neves em seu Guia de Uso do Português (2012):
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“Pela origem da palavra graça (do latim gratia), a expressão significa ‘em débito a’, ‘com recurso a’, ‘com a ajuda de’, o que implica um complemento de valor positivo (eufórico), em construção em que se faz referência a uma obtenção afortunada. [...] Entretanto, a expressão também tem o significado mais genérico de ‘por causa de, ‘devido a’, usando-se, portanto, também com complemento de valor negativo (disfórico) ou neutro: ‘Assim, graças à sua desimportância estratégica e à sua maldição, a villa se conservou, com seus tesouros de arte’. (Aqueles cães malditos de Arquelau, Isaías Pessoti) ‘E assim fiquei sem saber exatamente o que tenho, ou mesmo se tenho, graças à enciclopédica ignorância do doutorzinho que me atendeu’. (A Lua vem da Ásia, Campos de Carvalho); ‘O nosso é que, graças ao critério dele, o pensamento de Eurípides, por exemplo, não foi integrado ao corpus doutrinário tradicional da filosofia.’ (Aqueles cães malditos de Arquelau, Isaías Pessoti).”
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Esse é o mesmo entendimento de José Maria da Costa em seu Manual de Redação Jurídica (2016):
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“Nada impede que se empregue a mencionada expressão em sentido negativo, como é fácil perceber nos exemplos seguintes: a) ‘Estamos sendo levados à bancarrota graças a uma política de incompetência e a uma corrupção nunca antes vista na história deste País’; b) ‘A equipe perdeu vergonhosamente o mundial graças a uma série de equívocos dos dirigentes e à profunda arrogância e indolência dos jogadores’.”
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Conclusão: Pode-se até preferir usar “em virtude de” e “graças a” apenas em contextos positivos, mas isso é apenas uma preferência, e não regra do Português, uma vez que a língua – muitas vezes ignorando a lógica tradicional e seguindo sua própria lógica particular – legitimou o uso dessas locuções com sentidos além do positivo.
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