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Supostos erros inéditos de Machado reacendem debate sobre usos consagrados por clássicos

Foto do escritor: Evandro DebocharaEvandro Debochara

O Bruxo do Cosme Velho tem assombrado até hoje muitos supersticiosos gramaticais

ARKHAM (Reuters) – Warren Rice, professor de Línguas Clássicas da Universidade de Miskatonic (Arkham, Massachusetts), anunciou ontem a descoberta de vários erros considerados “aterrorizantes” nas obras daquele que se tornou um dos autores mais citados como exemplo de correção em gramáticas brasileiras. O pesquisador estrangeiro, que se confessa assombrado pelo Bruxo do Cosme Velho, apontou em contos e romances deste vários usos que, de acordo com tradicionais lições do português, seriam diagnosticados como graves vícios de linguagem. Como exemplos, cita:


1) sujeito preposicionado em orações reduzidas de infinitivo (“Antes dela ir para o colégio", em Dom Casmurro; “São horas da baronesa dar o seu passeio...” no conto A Mão e a Luva; “Minha mãe sufocou este sonho pouco depois dele nascer”, no conto Umas Férias);


2) advérbio melhor como comparativo de superioridade antes de particípio (“E foi à estante e tirou um dos relatórios para ser melhor visto” em Esaú e Jacó; “[...] são sempre melhor ensinadas naquelas casas”, em Dom Casmurro);


3) Locução de através de com sentido de por meio de (“Creio que terão entendido isso mesmo, através da forma alegórica”, na coletânea Papéis Avulsos);


4) Inúmeros pleonasmos (“sair cá fora”, “duas metades”, “junto com”, “juntamente com” etc.).


No entanto, a reação de acadêmicos e literatos brasileiros a essa descoberta foi de puro deboche, uma vez que esses supostos desvios já eram conhecidos há tempos, tendo sido corrigidos por revisores em algumas edições mais modernas das obras do escritor, mas respeitados e mantidos em outras. A questão que ainda parece permanecer é: certos estilos dos escritores canônicos sem aprovação de lições tradicionais têm ou não o poder de legitimar o seu uso na escrita culta de hoje?


Professor do Departamento de Linguística da Unicamp, Sírio Possenti ri da patética descoberta: “Pra começo de conversa, esses supostos erros não passam de usos condenados por lições tradicionais que encontram pouca ou nenhuma acolhida no português culto contemporâneo. Nem um bechara da vida é louco de defendê-las! Hoje muitas delas sobrevivem como regrinhas típicas de manuais de redação de jornal, úteis para padronização interna, mas que filtram aquilo que a norma culta faculta hoje ao usuário da língua. Aliás, se lermos atentamente as notícias, perceberemos que nem os jornalistas do Estadão e da Folha, por exemplo, seguem as regras de seus respectivos manuais, que acabam sendo seguidos muito mais por aqueles que nem sequer trabalham nesses jornais”, alfinetou o autor das Malcomportadas Línguas.


Questionado sobre alguns desses apontamentos de incorreção, o escritor Sérgio Rodrigues, autor de Viva a língua brasileira!, observou que, “realmente, gramáticos reacionários insistem que 'melhor' no lugar de ‘mais bem’ seja um crime, mas a dinâmica da língua insiste em contradizê-los: não é nada fácil contrariar usos encontrados em clássicos como Camões e Machado de Assis. Azar o deles”. Quanto ao emprego de através de significando por meio de, ele se espanta em ainda haver patrulhamento sobre essa forma: “Ora, existe na linguagem uma força poderosa chamada sentido figurado. Condenar tal ampliação semântica de ‘através’ é tão sensato quanto banir uma expressão como 'banho de loja' com base no argumento de que não se sai molhado do shopping”.


Quanto às redundâncias, o professor aposentado da UFRJ Castelar de Carvalho – que há dois anos lançou o Dicionário Machado de Assis – lamenta haver quem até hoje rotule todo e qualquer pleonasmo como vicioso, ignorando muitos deles como recurso autêntico de realce e clareza: “Machado fazia amplo uso de redundâncias, inclusive as empregadas no período arcaico da língua e preservadas na prosa clássica portuguesa. E o pior é que, além dos pleonasmos usados por ele, existem vários outros, fartamente listados e condenados em blogs e posts de redes sociais, que constituem recursos estilísticos legítimos, nada tendo de viciosos e tampouco de condenáveis. Se você não redunda, não desresdunde os redundantes!”

O fato é que esse e vários outros empregos – de literatos canônicos – sem acolhida entre gramáticos ou por boa parte deles já se veem consolidados nos mais diversos tipos de texto além do literário, alguns dos quais já reconhecidos como corretos por autores contemporâneos, como é o caso do sujeito preposicionado (“antes dela ir...”, “são horas dela dar seu passeio”; “depois dele nascer”), uma tradição do idioma exaustivamente analisada e defendida por Evanildo Bechara, que não aguenta mais falar sobre o assunto e se recusou a dar entrevista. Já Celso Luft, se estivesse vivo, provavelmente abriria um sorriso de pena ou deboche ao ver alguém tratar junto com e juntamente com – abonados em seu Dicionário Prático de Regência Nominal – como viciosos.


Por fim, analisando o caso para além das questões sintáticas, o especialista em Sociologia da Religião Faustino Teixeira observa que a persistência da crença em rigores como esses – que condenam os usos que Machado e outros clássicos faziam – reside no fato deles serem pregados e seguidos religiosamente por seitas de fanáticos concurseiros, convertidos em cultistas que parecem aguardar mais pelo retorno de Cthulhu do que por sua aprovação em exames. “Na verdade, esses fiéis devotos à variante concurseira da língua, cegados pelo temor de perder um décimo de ponto em provas de português e redação e queimar eternamente no inferno da reprovação, acabam não enxergando o fato de que a língua culta é muito mais abrangente que as regras filtradas e seletas das sacerdotais bancas examinadoras que eles precisam seguir à risca e que creem serem as únicas capazes de salvar todos os falantes. Assim, também não se dão conta de que a pregação que promovem fora de suas igrejas se mostra invasiva, constrangedora e indesejável para agnósticos e livre-prosadores, que defendem o caráter laico e não dogmático da língua”, observou.

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