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Catéter versus catetér: os gramáticos que lutem

Ulisses e as Sereias Incultas (Herbert James Draper, 1909)
Ulisses e as Sereias Incultas (Herbert James Draper, 1909)

A maioria dos gramáticos contemporâneos prescreve a pronúncia catet(é)r com a justificativa de que seu étimo grego é oxítono. Alegam que os substantivos portugueses de origem erudita, terminados em -er e derivados de substantivos gregos, são em geral oxítonos: clist(é)r, halt(é)r, masset(é)r, uret(é)r. Mas a língua portuguesa nem sempre se importa com etimologias e está pouco se lixando para o que diz a língua grega. Dos médicos ao povão, a pronúncia predominante (Houaiss, 2001) sempre foi cat(é)ter; era de se esperar, portanto, que ela se tornasse um dos alvos favoritos da patrulha prosódica.

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Ao tratar de silabadas (desvios de pronúncia que deslocam o acento tônico das palavras), Mattoso Câmara explica que às vezes esses erros se generalizam e se firmam por motivos vários [...] de tal modo que o esforço erudito para restituir a pronúncia etimológica viria de encontro ao funcionamento atual da língua. É o caso, entre muitos outros, de míope, por mi[ó]pe (do latim por empréstimo do grego) (Dicionário de fatos gramaticais, 1956, p. 189). Mas por que resgatar a prosódia etimológica em detrimento de uma pronúncia consolidada desde que a palavra ingressou no português, na primeira metade do século XIX? Sim, cat(é)ter não era considerado barbarismo e tampouco é uso moderno, ao contrário do que muitos sabichões possam imaginar. A pronúncia paroxítona da palavra em português "não nos veio da Grécia: veio de Roma, como bem observa o português Cândido de Figueiredo, e já era tão consagrada que assim foi amplamente registrada por dicionaristas brasileiros e portugueses do século XIX e início do século XX:

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caTÉter, s.m. Tenta de que usão na Cirurgia. (Antônio de Moraes Silva, 1823)

caTHEter, s. m. (pron. caTÉter: do Gr. καθίημι, kathiemi, introduzir) [...]. (Solano Constâncio, 1836)

caTHÉter, s.m. (cirurg.) sonda estriada [...]. (Eduardo Augusto de Faria, 1849)

caTHÉter. Termo de cirurgia. Sonda ôcca e curva [...]. (Domingos Vieira, 1873)

Catheter (kaTÉter) s. m. sonda da bexiga [...]. (António José de Carvalho, João de Deus, 1877)

caTHEter (ka-TÉ-ter), s. in. (med.) sonda cannelada [...]. (Caldas Aulete, 1881)

caTHÉter, m. sonda, que se emprega [...]. (Cândido de Figueiredo, 1889)

caTHÉter. Instrumento destinado [...]. (Chernoviz, 1890)

Cathéter [ka-TÉ-ter], s. m. (cir.) sonda [...]. (J. T. da Silva Bastos, 1912)

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Coerentes com esse uso, os gramáticos brasileiros e portugueses de outrora ensinavam que cateter era, portanto, paroxítono:

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Excetuam-se [da regra de oxítonas] os acabados por r: alcáçar, aljôfar, almíscar, ámbar, assúcar, cadáver, kharácter (plural kharactéres), CATHÉTER, éther, júnior, Júpiter, mártyr, nácar, néctar, prócer, revólver, sênior, sóror, Tánger, Victor. (Júlio Ribeiro, Grammatica portugueza, 1881)

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[terminados] em ar, er, yr, or, ur – alcaçar, aljofar, almiscar, ambar, assucar, caracter, cadaver, CATHETER, cancer, ether, impar, martyr, nacar, nectar, procer, revolver, cremor, soror, Tanger, Victor, femur, sulphur, PAROXYTONOS. (Alfredo Gomes, Grammatica portugueza, 1895)

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 catheter | ka-TÉter (Domingos de Azevedo, Grammatica nacional, Lisboa, 1899)

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Exceções [à regra dos oxítonos terminados por 'r']: almíscar, açúcar, néctar, nenúfar, aljôfar, Almodóvar, éter, prócer, caráter, cadáver, CATER, estáter, repórter, revólver, Deméter, fêmur, súlfur. (Eduardo Pereira, Gramática expositiva, 1907)

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Corroborando tudo isso, ao lançar seu Vocabulário Ortográfico e Ortoépico da Língua Portuguesa (1909), o célebre foneticista e ortógrafo português Gonçaves Viana reafirma a prosódia de palavras de natureza análoga à de cateter, inclusive sinalizando seu acento, como em uRÉter e masSÉter.

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Ora, se essa era a pronúncia usual descrita em dicionários e ensinada em gramáticas até o início do século XX, por que diabos a maioria dos gramáticos hoje em dia prescreve a prosódia oxítona? Por causa dos malditos eruditos pedantes desocupados apegados à etimologia. Um dos mais influentes era o filólogo brasileiro Ramiz Galvão (1869-1938), imortal da ABL que, em seu Vocabulário etimológico, ortográfico e prosódico das palavras portuguesas derivadas da língua grega (lançada no mesmo ano que o Vocabulário de Gonçalves Viana, em 1909), desprezava esse uso consolidado em Português por puro capricho e elitismo:

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Os diccionarios accentúam cathéter; mas, NÃO SENDO ESSE USO GERAL ENTRE OS SCIENTISTAS, e contrariando tal prosodia abertamente a quantidade da raiz, DEVE SER PREFERIDO cathetér, como se proviesse regularmente pelo accusativo latino cathetérem, tal qual clystér perfeitamente formado e accentuado. (p. 131)

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Ou seja, pura forçação de barra. Esse tipo de cagação de regra era estendido para outras palavras de origem grega herdadas por meio do latim, como míope, que o eruditoide prescrevia myÓpe, para corrigir o êrro de se fazer proparoxytono este vocábulo (p. 405). Aliás, essa sua obra provocou tantas polêmicas na época que, um ano depois, recebeu várias respostas do filólogo Cândido de Figueiredo, em seu livro Vícios da linguagem médica (1910), uma delas contestando brilhantemente a justificativa para essa pronúncia oxítona de cateter:

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Não se pode nem se deve imaginar que o cateter proviesse de um acusativo. Teve a mesma sorte que o carácter, que ninguém dirá caractér, e que o Sr. Galvão supõe excepção única ao facto de serem oxítonos os substantivos portugueses derivados de substantivos gregos em er. Há de perdoar, mas póde também citar éter', que ninguém diz etér, e, se carácter e éter estão muito bem, como derivados de nominativos, não vejo necessidade de contestar iguais direitos ao uréter e ao catéter, obrigando-os a constituir família, á parte do éter e do 'carácter. Tomara eu que todas as palavras terminadas em r fôssem oxítonas, como andar, fugir, amor, qualquer, porque isso seria mais um passo na simplificação do ensino da língua; mas, desde que não podemos alijar o âmbar, o açúcar, o néctar, o hépar, o vómer, o súlfur, o éter, o carácter, etc., póde o catéter e o uréter entrar na tribo, que nela não fazem dano em desdoiro. (p. 247-248)

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Apesar de todos esses fatos fundamentando o uso de catéter, no fim das contas, a maioria dos gramáticos brasileiros acolheu a eruditice arbitrária contra o uso consolidado. Ironicamente, é Napoleão Mendes de Almeida, o gramático mais apegado à etimologia, à correção das palavras segundo suas origens, que diverge dos demais, ensinando que a palavra é grega, mas o latim obriga-nos a dizer caTÉter no singular e catetéres no plural (Questões vernáculas, 2001, p. 87).

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Vale observar que Napoleão estende esse critério para outras palavras oriundas do grego, mas que chegaram até nós por meio do latim: Digamos no singular, sem medo de errar: esfíncter, caráter, masséter, monáster, catéter, uréter (Questões vernáculas, 2001, p. 578). Segundo o gramático linha-dura, catet(é)r e uret(é)r são silabadas. Quem conhece esse caturra sabe que ele frequentemente adota o latim como critério de correção para o português; e aqui sua lição vai justamente ao encontro dessa pronúncia usual desde sempre tanto no Português brasileiro quanto no europeu. Mas... e aí? Será que os fãs e os discípulos desse gramático, orgulhosos defensores da língua pátria, pronunciam tais palavras como ensina o seu mestre? Ou seguem a prescrição generalizada?

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Convenhamos: a esta altura do campeonato, é muito mais fácil reconhecer – e prescrever – a dupla prosódia de cateter (tal como ocorre com inúmeras outras palavras do português, como acróbata / acrobata, biotipo / biótipo, boemia / boêmia, hieroglifo / hieróglifo, homília / homilia, Oceania / Oceânia, ortoépia / ortoepia etc.) do que tentar impor uma única pronúncia e condenar outra já consolidada. Mas isso não é problema nosso. Cat(é)ter ou catet(é)r? Tanto faz. Os gramáticos, mais uma vez, que lutem contra um uso consagrado há séculos na língua.

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