Habemus grammaticum: o conclave da ABL para eleger o novo papa da gramática
- Evandro Debochara
- 3 de jun.
- 4 min de leitura
RIO DE JANEIRO (Reuters) – Com a morte de Evanildo Cavalcante Bechara no último dia 22, dezenas de cardeais da língua portuguesa devem se reunir em breve na Academia Brasileira de Letras para o conclave, a votação que define o novo papa da Igreja Gramatólica.
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A reunião acontecerá a portas fechadas, e não há previsão de quanto tempo será necessário para se chegar a um nome que suceda o erudito pernambucano. Mas uma coisa é certa: entre os candidatos, os favoritos são todos homens binários (para quem só existem duas coisas: o certo e o errado, sendo eles os certos e os outros, os errados). “Infelizmente, são todos gramatonormativos e intolerantes com palavras que mudam de gênero”, lamenta Luciana Lima, estudante de Letras da UFRJ.
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A escolha de um novo nome parece um grande desafio, uma vez que a maioria maciça dos gramáticos brasileiros mais prestigiados (Domingos Cegalla, Celso Cunha, Celso Luft, Napoleão Mendes de Almeida) já faleceu. Entre os que ainda estão vivos, parece não haver nenhum nome de projeção ou com o mesmo prestígio que os já falecidos adquiriram durante o século passado.
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“Por que não o Sacconi?”, indaga um idoso fã do gramático, licenciado – segundo dizem – pela USP. “Pra começar, seria preciso encontrar o Sacconi e provar sua existência. Ninguém nunca viu o Sacconi, não faz nem ideia de como ele seja fisicamente. É um nome que aparece assinando livros e só, sem registro no Lattes ou na USP. Não há fotos dele em lugar algum, nem na Internet. Será que ele existe de verdade ou é só invenção de uma editora, um personagem criado por professores de português?”, questiona o professor Sérgio Nogueira. “É melhor que permaneça obscuro. Se Sacconi fosse eleito papa, seriam apagadas décadas de pequenos avanços e conquistas de papas como Luft, Cegalla e Bechara. Ele faria nossa igreja retroceder”, diz Frei Betto, que enfrentou rigorosas correções durante a ditadura vernacular do papa Napoleão (1964-1985).

Na verdade, quando se fala em gramática ou língua portuguesa no Brasil, um dos primeiros nomes que vêm à cabeça dos fiéis não é Sacconi, mas sim Pasquale Cipro Neto. “É um bom nome. Tem apelo popular e o prestígio de várias gerações que cresceram acompanhando suas lições em livros, rádio e TV. Era meio ‘grammar nazi’ em início de carreira, mas o tempo e a experiência o tornaram um teólogo tolerante, crítico e lúcido em relação aos fatos linguísticos”, diz a professora Thaís Rigoletti. “Infelizmente ele ainda é bispo, e não cardeal, o que pode dificultar sua candidatura como papa”, concluiu.
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Entre os clérigos da ABL, o celibato linguístico continua sendo obrigatório: nada de se entregar a desejos e tentações das variações linguísticas, para não haver o risco de legitimá-las na sagrada língua escrita. Já entre os fiéis, são poucos os que seguem tal prática com rigor. “A Igreja ainda condena um uso tão natural como ‘a cônjuge’, e em seu lugar só admite tradições bizarras como ‘o cônjuge feminino’, ‘o cônjuge mulher’, ‘o cônjuge varoa’, ‘o cônjuge virago’. Também defende a manutenção da preposição ‘a’ regida pelo verbo ‘assistir’ com sentido de ‘ver, estar presente’, mas, com exceção de fiéis mais devotos, ninguém mais usa essa preposição ou se lembra dela nessa regência verbal. Na língua falada ela já desapareceu, e na língua escrita respira por aparelhos aqui e ali”, observa Leonardo Boff, expoente da Teologia da Libertação Linguística. “Os sagrados ensinamentos ainda insistem em condenar a próclise em início de oração e ‘vende-se peixes’ em favor de ‘vendem-se peixes’. Ora, muitos que defendem a preservação dessas lições nem mesmo fazem uso real e efetivo delas”, aponta Frei Betto.
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Apesar da preservação desse catecismo, que é ainda mais rigoroso em comunidades como a Opus Dei (que prega a total submissão do português ao latim), seria injusto afirmar que a Igreja parou totalmente no tempo. Muitos preceitos mudaram desde o julgamento de Galileu (condenado por afirmar que a gramática gira em torno da língua, e não o contrário). Exemplos: vários particípios irregulares, como “pego”, “gasto”, “ganho”, “aceite” e “assente”, outrora tratados como profanos, têm hoje a bênção da correção; a ortografia portuguesa, submissa durante séculos à sagrada etimologia do grego e do latim, cedeu gradativamente às variações fonéticas da língua laica; muitos vocábulos com uma única pronúncia fixada pelos concílios passaram a usufruir do direito de dupla prosódia; palavras masculinas e femininas que mudaram de gênero – e que foram excomungadas por isso – têm hoje reconhecida sua natureza comum de dois gêneros; e verbos tradicionalmente tratados como defectivos conquistaram o direito à conjugação completa.
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Com o fim do pontificado de Bechara, a dúvida que resta agora é qual direção o Gramatolicismo tomará daqui para a frente: levar adiante uma visão mais crítica e lúcida de língua, acompanhando variações e mudanças que vão se consolidando no uso contemporâneo; ou conservar regras que, na prática, os falantes apenas fingem que seguem ou, no máximo, só aplicam em concursos públicos.
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