O yôga versus a ióga: o sânscrito que lute
- Evandro Debochara
- 21 de jun.
- 2 min de leitura
No sânscrito, yoga sempre foi uma palavra de gênero masculino e pronunciada com “o” de timbre fechado (ô). Mas, ao conhecer a libertina língua portuguesa no fim do século XIX, ela foi se livrando dos estereótipos de gênero, pronúncia e grafia, decidindo ser classificada, falada e escrita de mais de uma forma, fato que até hoje causa discórdia entre os mais devotos seguidores dessa disciplina e os demais falantes, indiferentes com origens e tradições.
O nome desse milenar sistema de práticas físicas, filosóficas e espirituais originário da Índia chegou ao português talvez por meio do inglês yoga (1820), talvez através do francês yoga (1842). Os primeiros registros dicionarizados em língua portuguesa (década de 1890) grafavam a palavra com y e a acentuavam, indicando a pronúncia de forma distinta da original, isto é, “o” com timbre aberto: “yóga”. Não demorou para ser aportuguesada com a grafia “ioga” (a letra y ficou oficialmente fora de nosso alfabeto entre 1943 e 2009, embora na prática muitos brasileiros continuassem usando k, w e y em português como se essas letras nunca tivessem sido excluídas) e assim ser dicionarizada.
Essa palavra sânscrita só manteve seu gênero masculino em Portugal; no Brasil, graças ao uso que levava em conta sua terminação em -a, ‘ioga’ se descobriu trans, declarando-se feminina, tanto que vários dicionários (Houaiss, Aurélio, Aulete, Michaelis etc.) a registraram originalmente como ‘a ioga’ e assim a registram unicamente até hoje. Entretanto, muitos mestres iogues, fiéis ao sânscrito, se mantiveram irredutíveis, defendendo veementemente a tradição: “É O Yôga!”, lição que seus discípulos repassavam aos leigos. Com isso, a palavra decidiu se declarar de gênero fluido, direito reconhecido oficialmente pelo Tribunal da ABL e homologado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que a classifica como substantivo de dois gêneros, além de registrar a grafia “yoga” no Vocabulário de Estrangeirismos. Assim, pode-se dizer corretamente, em língua portuguesa, “o yoga / o ioga” ou “a ioga / a yoga”, independentemente de etimologias ou preferências de uso.

Quanto à pronúncia, a ortoépia – que mal consegue fixar a prosódia de várias palavras, inclusive a dela própria – deixou o timbre vacilante e variante, para o horror dos iogues mais fundamentalistas. Há quem inclusive distinga a grafia e a pronúncia conforme o sentido, tratando a forma “Y(ô)ga” (alguns fazem questão de destacá-la com inicial maiúscula) como a filosofia / disciplina milenar, e a posterior “i(ó)ga” apenas como prática de exercícios mentais e físicos consagrada no Brasil durante o século XX. Mas hoje em dia é tarde demais para estabelecer qualquer diferenciação, uma vez que tanto os dicionários quanto as pessoas (principalmente as não praticantes da disciplina) nunca distinguiram grafia ou pronúncia conforme este ou aquele sentido.
Conclusão: devidamente fundamentados na etimologia, os mestres iogues (ou “ioguins”, ou, mais rigorosamente ainda, “yôgins”) corrigem a pronúncia, a grafia e o gênero da palavra usada por seus alunos; fora das escolas, das academias e dos cursos, no entanto, a variação prosódica, gráfica e de gênero corre solta, livre e desimpedida. Na terra do indisciplinado português brasileiro, o disciplinado sânscrito só dita as regras dentro das embaixadas iogues.
Comments