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Revoltas regenciais (1831-1840)

Foto do escritor: Evandro DebocharaEvandro Debochara

Na primeira metade do século XIX, mesmo após declarada a independência do Brasil, o Português Brasileiro continuou sujeito às regras do Português Europeu graças ao conservadorismo de políticos ainda submissos à sintaxe lusitana e com forte oposição a variações e mudanças, o que provocou rebeliões contra a regência oficial em várias regiões do país. Nem mesmo o avanço liberal promovido pelo padre Diogo Antônio Feijó conseguiu lidar com a instabilidade do regime verbal, cujos efeitos se fazem sentir ainda hoje. As rebeliões mais marcantes desse período foram:


LHEÍSMO (Pernambuco, 1831–1834). Teve início nas ruas de Recife, onde o lhe usurpou o cargo de objeto direto para o qual outros pronomes oblíquos haviam sido nomeados: Deus lhe abençoe!, Quase não lhe vejo, Posso lhe abraçar?, Não lhe respeito, Eu lhe furo!, Ele lhe ameaçou?, A polícia lhe visitará. Aos poucos, o lheísmo – que contava com o apoio dos liberais exaltados – foi se espalhando por outras províncias do Império. Com a unidade linguística nacional em risco, a Regência Trina Permanente procurou conter a expansão dessa prática, mas decidiu dar certa autonomia às províncias rebeladas e reconhecer o lheísmo como regionalismo.


ASSISTIR (Mato Grosso, 1834) – Hoje em dia, muitos brasileiros assistem filmes, séries, shows, missas e espetáculos graças aos amotinados mato-grossenses, que se recusaram a assistir a qualquer fato ou evento preposicionado. Um dos últimos redutos de oposição à transitividade direta de assistir com sentido de ver, "presenciar, "estar presente é a redação de concursos e vestibulares, que descontam pontos de candidatos que não assistem às aulas de regência tradicional.


(DES)OBEDECER (Pará, 1835-1840) – A regência dos tempos do padre Antônio Vieira era transitiva direta; posteriormente as elites nomearam a transitiva indireta como uso de prestígio. Mas os cabanos recuperaram aquela transitividade por meio de desobediência civil: não queriam saber de obedecer a mais nada; apenas obedeciam leis e autoridades sem amparo de preposição. O regente verbal uno Araújo Lima viu nessa sutileza uma afronta à variante de prestígio e mandou reprimi-la, mas em vão: até hoje, milhões de brasileiros vivem obedecendo e desobedecendo regras, normas e leis.


IR/CHEGAR EM (Bahia, 1837-1838) – O ato de ir ou chegar em algum lugar, iniciado por baianos fartos dos costumes lusitanos de sempre ir ou chegar a lugares, mostrou-se um tanto subversivo para a Regência Verbal Una de Araújo Lima, que, temendo esse avanço liberal, promoveu o regresso conservador, jamais reconhecendo o direito de ir e chegar em qualquer lugar, negado até hoje em plena era republicana, embora os brasileiros continuem sempre chegando em casa, e nunca a casa.


ESQUECER DE (Maranhão, 1838-1841) – A regência imperial só permitia esquecer-SE de algo ou de alguém (embora também fosse admitido esquecer algo ou alguém). Mas os balaios maranhenses, que viviam em condições sociais cada vez mais precárias, começaram a esquecer dos pronomes oblíquos, e, quando perceberam que não precisavam deles para se fazer entender, iniciaram um movimento que violou outras regências, deixando de lembrar-se dos erros e passando apenas a lembrar deles. De nada adiantou a repressão de Caxias a esses esquecimentos, tanto que hoje em dia ninguém reclama ao ver um filme intitulado Esqueceram de mim.


PREFERIR... DO QUE, PREFERIR ANTES/MAIS (Rio Grande do Sul, 1835-1840) – Os farrapos preferiram pegar em armas do que respeitar a regência imperial, que preferiu preservar a tradição a ceder à variação. Os gaúchos também preferiram antes a morte do que preferir a qualquer coisa. Vistas como prenúncios de separatismo linguístico, essas preferências foram reprimidas pelas tropas puristas de Caxias, mas até hoje os brasileiros preferem a regência condenada do que a tradicional, que continua sendo a única ensinada por gramáticos como se ainda vivêssemos nos tempos do império.


Embora as revoltas tenham sido sufocadas, e suas práticas nunca legalizadas, sua influência continuou viva Brasil afora e adentro, refletindo-se na obra de inúmeros escritores brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Euclides da Cunha, Humberto de Campos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Rachel de Queiroz, Oswald de Andrade, Visconde de Taunay etc.

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