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Com a polissemia que tenho, consigo emprego onde eu quiser, diz verbo ter

Foto do escritor: Evandro DebocharaEvandro Debochara

BRASÍLIA (Reuters) – Alvo de críticas e preconceitos desde que passou a ser usado, em ambientes formais, no lugar do verbo haver nas acepções impessoais de “estar presente”, “encontrar-se”, “existir”, “acontecer” e “realizar-se”, o verbo ter revelou não se importar com sua restrição na língua culta, uma vez que sua formação polissêmica lhe garante emprego onde quiser. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ Tudo indica que ele tenha toda a razão, já que é um verbo campeão em polissemia no âmbito da língua portuguesa. Nas áreas de Lexicologia e Semântica, dá-se o nome de polissemia à existência de uma pluralidade de significações para um mesmo vocábulo. É fenômeno comum em línguas naturais, sendo raras as palavras que não a apresentam. Suas causas podem ser os usos figurados, por metáfora ou metonímia, por extensão de sentido, analogia etc.; ou o empréstimo de acepções que a palavra tem em outras línguas. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ Para que se tenha uma ideia, o Houaiss registra mais de quarenta acepções para essa palavra; já o Aurélio registra sessenta. No Brasil, na África e inclusive em Portugal, o verbo ter é frequentemente usado em contextos informais diversos com o sentido de haver: “Tem muita gente contra a reforma”; “Tem muito tempo que esse deputado não comparece às sessões”; “Hoje vai ter vazamento”. E – talvez para surpresa de muitos – tal atuação não é de hoje, uma vez que estudiosos identificaram esse emprego como um arcaísmo datável do século XIV. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ Por isso, em entrevista, o versátil vocábulo não se mostrou preocupado com as críticas: “Seria muito mais fácil eu ir até as redes sociais, declarar que sou a favor do rigor da norma culta e ter a aclamação de boa parte dos (e)leitores mais conservadores. O fato é que muitos professores, jornalistas, revisores e concurseiros me excluem e me evitam por puro a apego a políticas gramaticais ultrapassadas”, disse. “Se todos esses meus significados no lugar do verbo haver me tornam estigmatizado e esnobado por usuários cultos e puristas, beleza. Com a formação polissêmica que eu tenho, consigo emprego onde eu quiser. Volto pras demais variedades linguísticas e continuo circulando por ambientes menos formais, mais coloquiais”. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ A polêmica declaração dividiu o público. Em sua defesa, muitos usuários reconhecem que o verbo ter é injustamente discriminado, sendo desprezado e excluído não só nos casos já exemplificados, mas até mesmo em contextos em que seu uso é legítimo, correto e até mais adequado, sendo preterido nesses casos – graças a práticas de hipercorreção – pelo elitizado verbo “possuir”, visto como mais elegante, nobre e bem-apessoado: “Ela possui a idade de 30 anos”; “O empresário possui uma dívida de dois milhões de reais”; “A criança possui uma dor de cabeça”. Já os conservadores, irredutíveis, apenas se limitam a alegar que a presença desse verbo no lugar de “haver” é imprópria, devendo o verbo recolher-se à sua (in)significância e se submeter ao rigor da lei, sob risco de pena corretiva. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ Na última quinta-feira, o presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi, confirmou que abriu um processo disciplinar para discutir qual será a consequência dos abusos gramaticais cometidos pelo verbo. Para o acadêmico Evanildo Bechara, “em seu frenesi polissêmico, o verbo ter cometeu crimes de lesa-gramática” que “não podem passar impunes”. A punição, a ser definida em até sessenta dias, pode chegar à expulsão do Vocabulário Ortográfico. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ (reportagem de Amanda Audi)

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