Cuidado com os militantes do negacionismo linguístico
- Evandro Debochara
- há 35 minutos
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A nova geração de caga-regras já chegou fazendo barulho, apostando tudo na doutrina do negacionismo linguístico: “Essa palavra não existe”; “Nunca é assim, é só assado” etc. E, como os brasileiros não resistem a uma condenação taxativa de palavra, expressão ou uso sintático, acabam se entregando de corpo e alma a essas correções forçadas sem questioná-las, obedecendo cegamente à Teologia da Normatividade, cujos pastores acumulam rapidamente centenas de milhares de fiéis seguidores.
É uma pena que, em pleno 2025, ainda existam pessoas que se deem ao trabalho de corrigir usos linguísticos legítimos e consagrados na língua falada (seja a mais informal, seja a mais culta). E, pior, fazendo afirmações do tipo “não existe” para algo que existe há tempos na língua... É aquela velha história de querer corrigir aquilo que não tem por que ser corrigido (e que tratamos anos atrás neste link). Ora, praticamente todo mundo diz, natural e espontaneamente, “fotinha” e “motinha”; e quem não diz geralmente é porque teve seu uso patrulhado por esse tipo de correção descabida, passando a empregar formas artificiais que causam total estranhamento em quem não seja alienígena: “motinho” e “fotinho”. Nesse caso, já que é para aplicar o rigor da gramatonormatividade, consultemos então o gramático tradicional que mais teve oportunidades de atualizar suas lições para o português de hoje, o recém-falecido Bechara:
“FOTINHO, FOTINHA (diminutivos) – Com o sufixo -inho, conserva-se a ou o final do vocábulo primitivo, sem a dependência de concordância com gênero masculino ou feminino da palavra primitiva: um poema – um poeminha; uma foto – uma fotinho; uma moto – uma motinho. Já com -zinho se faz obrigatória a concordância com o gênero, isto é, teríamos -zinho, quando masculino, e -zinha quando feminino: um cometa – um cometazinho; uma tribo – uma tribozinha. [...]
Em espanhol, idioma em que existem muitos desses derivados com a variação de gênero, discute-se, por exemplo, se é melhor dizer ‘manita’ ou ‘manito’, diminutivo de ‘mano’ ( = mão). O antigo e excepcional filólogo colombiano Rufino José Cuervo começou por considerar vulgarismo a forma masculina ‘manito’, para depois, conforme nos informa o linguista venezuelano Ángel Rosenblat, considerá-la desprezível vulgarismo, pela extensa divulgação territorial, mormente na América, da forma em -o. Acreditamos que a distinção rigorosa que a nova tese defende em favor de motinho, com final -o, sobre motinha, com final -a, despreza a regra geral de levar em conta o gênero da palavra primitiva, sem deixarmos de aceitar formas consagradas em -a aplicadas ou não a pessoas (como o poema – o poeminha, o poeta – o poetinha) e formas em -o também aplicadas ou não a pessoas (como a Socorrinho), e apaga a possibilidade que a língua portuguesa oferece aos usuários de optar por uma ou outra solução, quando for notória a liberdade de escolha.
Por tudo o que foi exposto, podemos concluir que SE PODE DIZER DAS DUAS FORMAS, a motinha e a fotinha, como a motinho e a fotinho, pelo processo anômalo de se ter substantivos femininos com final -o, e sendo eles reduções dos femininos a motocicleta e a fotografia. É o jogo clássico e imemorial das forças da analogia e da anomalia que controlam contrastantes a vida das línguas e da linguagem.” (Novo dicionário de dúvidas da língua portuguesa, Evanildo Bechara, 2016, p. 209)
Para além do parecer do Bechara (um dos melhores e mais esclarecidos especialistas que já tivemos, embora longe de ser perfeito, porque ninguém é), vale observar que nem precisávamos de nenhuma autoridade gramatical para nos dizer isso, pois uma pessoa que faz questão de corrigir empregos brasileiríssimos como “fotinha” e “motinha” é alguém que já morreu por dentro. É zumbi em sua própria língua.
Regra nº 2 do Clube da Gramática:
Cuidado com os militantes do negacionismo linguístico.
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