
[contém spoilers]
Um editor vê potencial nos originais de um escritor promissor. Durante a leitura do texto, no entanto, desconfia que o autor está possuído pela ação de possuir: incapaz de usar qualquer sinônimo verbal, só consegue possuir a cada oração, em qualquer contexto, às vezes com várias ocorrências num mesmo parágrafo. O caso é levado a linguistas e gramáticos, que suspeitam de males como hipercorreção, preconceito verbal, síndrome de insegurança gramatical ou baixo repertório vocabular e lhe recomendam uma "consulta a um estilista". O editor procura então um especialista em moda, mas só depois se dá conta de que se referiam a um estilista literário. Acaba conhecendo o padre Merrin, um mestre da estilística.
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De posse dos originais, o padre fica horrorizado com o emprego repetitivo e excessivo, que revela obsessão pela posse de qualquer substantivo, por mais abstrato que seja: "possui idade", "possui medo", "possui características", "possui uma dúvida", "possui consciência", "possui diretriz", "possui a finalidade", "possui riscos". Um horror maior, no entanto, surge depois, ao se deparar com manifestações mais graves de possessão: "possui um rapaz", "possui sobrinhos". Não há dúvidas: o autor está possuído pelo demônio Possu, conhecido obsessor de aspirantes literários.
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Munido das Sagradas Escrituras Literárias, o padre reza uma oração repleta de verbos sinônimos: ter, dispor de, conter, guardar, contar com, ser dotado de, usufruir, manter, apresentar, portar, encerrar, compreender. Tenta mostrar ao possesso não só o caráter formal e culto do tão estigmatizado 'ter' como também a elegância com que o verbo pode ser usado, entoando, logo em seguida, exemplos de mestres da literatura, com as mais diversas formas verbais alternativas e até mais adequadas em vários contextos no lugar da viciante muleta.
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Passado o exorcismo, livre do demônio que o possuía, hoje em dia, tudo o que o autor possui é um dicionário de sinônimos.
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