
SÃO PAULO (Reuters) – Hoje à tarde, no Jardim Europa, bairro nobre de São Paulo (SP), um entregador de aplicativo e um cliente entraram em luta corporal após divergirem sobre a entrega ser a domicílio ou em domicílio. Segundo o motoboy Edinei Silva, tudo começou quando ele disse ao cliente, Giancarlo Pedroso de Barros, “Boa tarde! Entrega a domicílio”, e este lhe respondeu: “Deus me livre receber entrega a domicílio”.
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Diante da reação de espanto do motoboy, o cliente se explicou: “O verbo entregar pede a preposição ‘a’ quando o objeto for a pessoa a quem se entrega. Por isso, você entrega a refeição AO cliente, mas deve usar a preposição ‘em’ quando a ação se associa ao lugar. Aí você entrega a refeição NO domicílio do cliente. Logo, o correto é ‘entrega EM domicílio’”. O entregador, contrariado, alegou que todo mundo que ele conhece “fala assim”, sendo retrucado pelo usuário do aplicativo: “Não sou todo mundo, sou futuro concursado. Que tal parar de entregar a domicílio e se entregar aos estudos?”. E assim se entregaram às vias de fato.
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A querela chegou até a 78ª Delegacia de Polícia de São Paulo, onde foi resolvida pelo delegado Ivânio Freitas, que, em vez de dar andamento às queixas, propôs aos contendores pequena palestra, fundamentando-se em obras de referência que retirou de sua prateleira: “O entregador agiu corretamente ao fazer a entrega a domicílio. É uma tradicional fórmula idiomática, mais antiga na língua que ‘em domicílio’, exigida pelo cliente. Entrega em domicílio surgiu depois, devido à obsessão purista da primeira metade do século XX, desencadeada por Cândido Lago e Laudelino Freire, e depois abraçada por Napoleão, de tal forma que se enraizou depois em manuais de redação, apostilas de concurso e gramáticas diversas. Esses autores tratam entrega a domicílio como galicismo, calcado no francês à domicile, e, pela rigorosa lógica deles, a entrega só pode ser ‘em’ um lugar, e nunca ‘a’ um lugar. Mas é uma criminalização que não procede, pois essa regência nominal é legalizada pela jurisprudência dos gramáticos mais modernos”, disse Freitas, que se graduou em Letras na USP antes de cursar Direito. “Essa regra purista determina que, com verbos estáticos, sem movimento, se deve dizer ‘entregar em domicílio’. Só com verbos dinâmicos, que indiquem movimento, como ‘levar’, ‘trazer’, ‘ir’, é que se pode dizer algo como ‘levar (algo) a domicílio’. Mas Celso Luft esclarece que o uso sempre contrariou essa regra sem sentido, sendo correto ‘a domicílio’ em todos os casos: ‘atende a domicílio’, ‘leciona português a domicílio’, ‘leva roupa lavada a domicílio’ etc.”.
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Logo em seguida, o delegado sacou um Bechara da prateleira para explicar a razão desse uso: “Ao dizermos ‘Entregou a refeição AO cliente EM seu domicílio’, juntamos as duas noções. Como a entrega da refeição é sempre feita A alguém, o falante, por uma elipse, faz aí uso de metonímia, reduzindo as duas noções (AO cliente e EM seu domicílio) àquela que considera a mais importante no contexto. Daí surgiu ‘entrega a domicílio’, que, além de ser expressão mais antiga na língua, sempre teve amplo uso em nossa literatura. Conclusão: o cliente tem todo o direito de exigir que a entrega seja feita dentro do prazo e com educação, mas não que ela seja feita obrigatoriamente EM domicílio. Não usando acento de crase, tá corretíssimo”.
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Inconformado e irredutível, o cliente concurseiro não se deu por vencido: “No Brasil até os grandes gramáticos deixam a língua entregue ao deus-dará. Procure saber como fazem entregas em Portugal”, rebateu. “Se eu fosse você, procuraria saber mesmo, porque lá os portugueses fazem entrega AO domicílio”, respondeu Freitas. O concurseiro então justificou que, se escrevesse assim em redação de concurso ou marcasse a locução como certa em questão de prova, “tomaria toco”. “Isso só prova que a língua culta é, na verdade, mais ampla e diversa que o dialeto concurseiro faz supor”, concluiu a autoridade policial.
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Quando tudo parecia bem para ambas as partes, o motoboy agradeceu a explicação, mas disse que mesmo assim denunciaria por preconceito linguístico o seu cliente. Já este, que ainda não havia almoçado, declarou que daria apenas uma estrela para o serviço, “por não ter recebido a entrega a tempo”; no entanto, até o fechamento desta reportagem, ainda não havia mandado a avaliação, pois estava em dúvida entre “a tempo” e “em tempo”.
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