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Do boquête (1830) ao boquéte (1990): um caso de homografia heterofônica

Foto do escritor: Evandro DebocharaEvandro Debochara

Boquete tem seus mais antigos registros conhecidos em língua castelhana datados do século XVII, como diminutivo irregular de boca (boca + sufixo diminutivo -ête), significando entrada estreita feita em algum lugar, desfiladeiro ou barranco que interrompe a uniformidade de um cume plano e contínuo" ou entrada estreita de um porto (Diccionario marítimo español, 1831). A palavra chegou ao português provavelmente na primeira metade do século XIX, apresentando – da mesma forma que o castelhano – a pronúncia do e tônico com timbre fechado (ê), para se referir a buraco, pequena boca (Dicionário de Cândido de Figueiredo, 1899), começo de uma zona apertada entre terrenos altos (Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, 1942), entrada ou abertura estreita (Aurélio, 1975) e tornando-se também sobrenome (tanto português quanto castelhano).

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Segundo o lexicógrafo português Cândido de Figueiredo – o primeiro a dicionarizar o vocábulo, no fim do século XIX –, a palavra teria surgido como provincianismo alentejano (de Alentejo, região do sudeste de Portugal). O fato é que, no Brasil, o registro mais antigo conhecido remonta a 1830, quando foi fundada a pequena freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Boquete, no município de Pelotas (RS), conforme registrado no Diccionario historico e geographico da provincia de S. Pedro ou Rio Grande do Sul (1865). Por alguma razão, décadas depois, a freguesia (isto é, povoação sob o aspecto eclesiástico) passa a ser registrada em vários documentos oficiais como Nossa Senhora da Consolação do Boquete (em vez de Conceição). Às vezes, ainda hoje, é referida como Nossa Senhora do Boquete ou simplesmente Freguesia do Boquete. Nesses usos, obviamente, a palavra indica um acidente geográfico, tal como em Lapa do Boquete, nome dado ao sítio arqueológico localizado no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, em Januária (MG). A igreja pelotense também era por vezes chamada de Capela do Boquete, e dessa forma foi eternizada num poema do maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, João Simões Lopes Neto:

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Desposou-se uma senhora

Na capela do Boquete;

E deu o maior banquete

                       Do mundo!

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(Uma festa, Cancioneiro Guasca, 1910)


Mapa da província de São Pedro do Rio Grande do Sul (séc. XIX)
Mapa da província de São Pedro do Rio Grande do Sul (séc. XIX)

Já a sua homógrafa, com o etônico de timbre aberto e a terminação -ete (usada para vários sentidos, e aqui remetendo a práticas sexuais, tal como em "cunete), surgiu como tabuísmo no Brasil mais de um século e meio depois, no início dos anos 90, conforme os registros de Antônio Houaiss (2001). Seu uso não se restringiu à oralidade do dia a dia, uma vez que a palavra passou a ser escrita até em jornais por colunistas sem papas na língua, entre eles, Paulo Francis: Clinton, acusado de ordenar um boquete a uma jovem chamada Paula Jones [...] (O Globo, 16 jun. 1996).

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Sua correspondente em inglês, blowjob, começou a circular nos EUA em meados dos século XX (provavelmente através de blow off, que havia surgido entre prostitutas nos anos 30). Segundo o já citado Paulo Francis, antes de descobrir a palavra boquete", ele se referia à felação como trabalho de sopro, expressão que alguns tradutores de legendas de cinemas brasileiros chegaram a usar para traduzir, literalmente, blowjob. Toda vez que essa tradução aparecia no telão, "o cinema desabava em gargalhadas, escreveu Francis certa vez.

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A palavra boquete surgido no século XIX – que originalmente tinha acentuação vacilante de circunflexo – nunca levou oficialmente acento, tal como sua homógrafa não homófona, surgida na década de 1990. E até hoje, para se referir ao sentido original da palavra, há quem use o circunflexo para evitar qualquer ambiguidade. Como a ortografia em vigor aboliu o acento diferencial, a homografia seria hoje um grande inconveniente para Nossa Senhora da Consolação do Boquetese o lugar ainda tivesse esse nome, hoje encontrado somente nos anais gaúchos.

 
 

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