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Ex-concurseiros relembram drama vivido com estimulantes gramaticais

Foto do escritor: Evandro DebocharaEvandro Debochara

Todo ano, em busca de estabilidade e vida melhor, milhões de brasileiros investem no domínio da língua de maior prestígio entre os estudantes de cursinhos preparatórios: a variante concurseira da língua, para a qual existem as chamadas “gramáticas para concursos”. Não foi à toa que o próprio Evanildo Bechara se viu levado a lançar anos atrás uma obra exclusivamente dedicada a essa variante, Bechara para Concursos. Esse português concursês não chega a ser homogêneo, já que é composto por dialetos concurseiros inerentes a cada banca examinadora – Cebraspe, FCC, Cesgranrio, FGV, Vunesp etc. Todas essas fundações fornecem matéria-prima para a indústria dos concursos, que tem viciado várias gerações com gramáticas concurseiras, também chamadas de estimulantes gramaticais. Estes, embora contribuam para o sucesso de pequena parcela desses usuários, podem fazer com que tanto reprovados quanto aprovados sofram com traumas, recalques, obsessões e questões difíceis de resolver.

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Professora há mais de 20 anos do ThetaCon (SP), Aline Canoro defende o uso de estimulantes: “Se usadas com moderação, gramáticas de concurso só fazem bem. Inclusive fornecem conhecimentos que podem ser úteis e proveitosos para além dos concursos, pelo resto da vida. O problema é que, para atender aos critérios de correção e ao alto nível de exigência das bancas, elas acabam fazendo um recorte mais preciso, conservador e rigoroso da língua culta, um filtro que resulta em tormento para alguns e em vício corretivo para outros”, diz ela, que é grammar influencer e tem um perfil no Instagram com mais de 90 mil seguidores.

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O problema descrito por Canoro foi vivido pelo ex-candidato Otávio Mansur. Aos poucos, o que ele entendia como português deixou de ser prazeroso exercício de leitura para se tornar arma contra a concorrência. No início, o uso lhe proporcionava alguma autoafirmação, como corrigir – com esta ou aquela regra decorada – falas ou textos de concorrentes, amigos ou parentes, pondo em risco até amizades e laços familiares. Mas todo esse ego inflado se esvaziava diante de questões e temas de redação que acabavam por derrotá-lo nos dias de prova. “Me restava então pagar caro por elaboração de recursos, que eram sempre indeferidos, porque a gramática do dialeto da banca não tolerava os usos abonados por outras gramáticas que estudei”, lamenta.

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O primeiro contato da ex-viciada Denise F. com gramáticas tarja preta se deu por meio de um professor cujas aulas lembravam sessões de stand-up. Durante esses shows, colegas sugeriam a ela o consumo de gramática combinado com Ritalina, Venvanse ou Adderall. “Aulas e apostilas me iludiam com artifícios pra fazer questões como a confusão entre adjunto e complemento nominal soarem divertidas e fáceis de serem resolvidas no dia da prova. Por fora, eu ria. Por dentro, só desgraçava minha cabeça”, desabafa. Nas provas, era frequentemente enganada: “Foram anos de terapia pra superar aquele sujeito, posposto ao verbo, que me fez acreditar que era um objeto direto”.

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Aprovado no concurso para técnico do TCU após vários anos usando estimulantes, Armando Ferola conta como se deu sua compulsão: “Comecei com coisa leve, apostila genérica que vendia em banca de qualquer esquina. Depois veio um ‘iniciado’ me dizendo que, pra encarar a dureza que é uma banca, tinha que apelar pra algo mais pesado, de autoria de coachs de empoderamento gramatical, esses medalhões da literatura concurseira, saca? Eu consumia geral, fazia prova, reprovava, e isso me fazia voltar a consumir, e eu ia me aplicando com toda edição atualizada que saía. Era um ciclo vicios... não... círculo vicioso...? Já esqueci. Cara, que fissura”, diz ele, atualmente em abstinência.

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Segundo a linguista da Universidade de Brasília Louise Banks, esses depoimentos sugerem que as bancas contribuem consideravelmente para o vício em estimulantes: “Seu caráter ultracompetitivo reduz a língua culta a mero maniqueísmo entre certo e errado, filtrando regras, exceções e casos facultativos que, embora ensinados em obras modernas, são ignorados em prol de abordagens conservadoras e ultrapassadas. Por mais boa vontade que professores mais esclarecidos tenham em alertar que pode haver divergências entre os gramáticos, que a língua culta também varia e é muito mais ampla do que a variante concurseira faz acreditar, muitos correm o risco de concluir o ciclo dos concursos com uma visão enrijecida e filtrada do idioma”, afirma a pesquisadora.

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Não é à toa que isso incomoda até mesmo os gramáticos. Certa vez, Celso Luft lamentou em sua coluna no Correio do Povo (RS) o gramaticalismo estreito de provas de português de vestibulares (hoje em dia, mais críticas e menos antiquadas que as provas de concursos): “Com alguma decepção, topo com surradas questões que denotam apego a regras gramaticais há muito alteradas na língua viva”. Recentemente, queixou-se Bechara em seu livro Fatos e Dúvidas de Linguagem (2021): “Vejo desvarios oriundos dos conceitos e preconceitos de certas bancas examinadoras de concurso, cujas lições são contestadas tanto pela teoria linguística quanto pela tradição literária. Ficam as pessoas muitas vezes prejudicadas sem a opção de um foro especializado a que possam recorrer para sanar injustiças cometidas pelo tribunal da gramática de concursos”.

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Quando até os gramáticos denunciam o excesso de rigor e as regras antiquadas, fica evidente o quanto essas bancas contribuem tanto para o tormento dos candidatos quanto para o estreitamento da visão de língua. Ainda assim, ex-concurseiros saem em defesa de seus algozes: “Apanhei muito da banca, mas graças às surras hoje sou um homem culto”, ilude-se um magistrado que não quis se identificar.

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