O grammatico (Humberto de Campos, 1921)
- Evandro Debochara
- 16 de mar.
- 2 min de leitura

Alto, magro, com os bigodes grisalhos a desabar, como hervas selvagens pela face de um abysmo, sobre os cantos da funda bocca munida de maus dentes, o professor Arduino Gonçalves era um desses homens absorvidos completamente pela grammatica. Almoçando grammatica, jantando grammatica, ceiando grammatica, o mundo não passava, aos seus olhos, de um enorme compêndio grammatical, absurdo que elle justificava repetindo a famosa phrase do Evangelho de João:
— No principio era o VERBO!
Encampado pela grammatica, e ás voltas, de manhã á noite, com os pronomes, com os adjectivos, com as raizes, com o complicado arsenal que transforma em um mysterio a simplissima arte de escrever, o illustre educador não consagrava uma hora, sequer, ás coisas do seu lar. Moça e linda, a esposa pedia-lhe, ás vezes, sacudindo-lhe a caspa do paletot esverdeado pelo tempo:
— Arduino, põe essa grammatiquice de lado. Presta attenção aos teus filhos, á tua casa, á tua mulher! Isso não te põe para deante!
Curvado sobre a grande mesa carregada de livros, o cabello sem trato a cahir, como falripas de aniagem, sobre as orelhas e a cobrir o collarinho da camisa, o notavel professor retirava dos hombros a mão cariciosa da mulher, e pedia-lhe, indicando a estante:
— Dá-me dali o Adolpho Coelho.
Ou:
— Apanha, ahi, nessa prateleira, o Gonçalves Vianna.
Desprezada por esse modo, Dona Ninita não supportou mais o seu destino: deixou o marido com as suas grammaticas, com os seus diccionarios, com os seus volumes ponteados de traça, e começou a gosar a vida passeando, dansando e, sobretudo, palestrando com o seu primo Gaudencio de Miranda, rapaz que não conhecia o padre Antonio Vieira, o João de Barros, o frei Luiz de Souza, o Camões, o padre Manoel Bernardes, mas que sabia, como ninguém, fazer sorrir as mulheres.
— Elle não prefere, a mim, aquella porção de alfarrabios que o rodeiam? Então, que se fique com elles!
E passou a adorar o Gaudencio, que a encantava com a sua palestra, com o seu bom-humor, com as suas gaiatices, nas quaes não figuravam, jámais, nem Garcia de Rezende, nem Gomes Eanes de Azurara, nem Ruy de Pina, nem Gil Vicente, nem, mesmo, apezar do seu mundanismo, o gracioso D. Francisco Manuel de Mello.
Assim viviam, o professor, com seus puristas, e Dona Ninita com o seu primo, quando, de regresso, um dia, ao lar, o desventurado grammatico surprehendeu a mulher nos braços musculosos, mas sem estylo, de Gaudencio de Miranda. Ao abrir-se a porta, os dois culpados empallideceram, horrorizados. E foi com o pavor nos olhos e no coração que o rapaz se atirou aos pés do esposo trahido, pedindo, supplice, de joelhos:
— Me perdôe, professor!
Grave, austéro, sereno, duas rugas profundas sulcando a testa ampla, o illustre educador encarou o patife, trovejando, indignado:
— Corrija o pronome, miseravel! Corrija o pronome!
E, entrando no gabinete, começou, cantarolando, a manusear os seus classicos...
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(Texto publicado originalmente no jornal O Imparcial, RJ, em 16 set. 1921 e posteriormente em seu livro Os Gansos do Capitólio, no mesmo ano. Em ambas as publicações, o escritor usou o pseudônimo “Conselheiro XX”.)
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