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O caso do puto literário

Foto do escritor: Evandro DebocharaEvandro Debochara

Assim como vários escritores de língua portuguesa de sua época, Machadão era chegado nuns latinismos: salpicava com citações e alusões latinas os seus romances e contos, não pela vaidade da erudição, mas como recurso de intertextualidade oportuno – e não raro irônico.

Um dos latinismos que ele mais curtia citar era esta frase do poeta e dramaturgo romano Terêncio (séc. II a.C.), extraída de ‘O carrasco de si mesmo’ (I, 1, 25): Homo sum: humani nihil a me alienum puto, traduzida por Paulo Rónai como Sou homem: eu não considero alheio a mim nada do que é humano. Originalmente, na peça de Terêncio, a afirmação é feita por um personagem para se defender da acusação de espiar os vizinhos; mas, conforme foi sendo citada por outros autores, como Sêneca e Santo Agostinho, acabou ganhando novas interpretações. De uns tempos pra cá, a frase passou a ser geralmente citada – com leves alterações – como expressão do sentimento de solidariedade humana.

A citação foi registrada pelo menos umas quatro vezes na obra de Machado, mas sempre com uma supressão: ele NUNCA transcrevia a expressão latina até o fim. Quando chegava ao puto, metia um etc. no lugar, ou então cortava a expressão bem antes: Homo sum et nihil humanum a me alienum, etc.; Homo sum et nihil humanum, etc.; Homo sum, etc.

Nessa máxima de Terêncio, a palavra latina puto é a conjugação na 1.ª pessoa do presente do indicativo do verbo putare = julgar, estimar, calcular, pensar, conhecer, crer, imaginar, considerar, mas que também tinha o sentido de limpar, purificar.

Já a palavra portuguesa puto se originou dum adjetivo latino derivado de putare: putus = puro, límpido, mas também usado para designar menino, rapazinho. Este último sentido oriundo do latim mantém-se até hoje em Portugal, ao passo que no Brasil veio a tomar sentido pejorativo por influência da já corrompida (há muito mais tempo, inclusive em Portugal) forma feminina puta (que originalmente significava moça puríssima e limpa, segundo dicionaristas e gramáticos portugueses de séculos remotos).

Por causa do tabuísmo exclusivamente brasileiro, Machado achava melhor não arriscar: o temor de não ser entendido e de escandalizar leigos em latim com uma palavra passível de má ou maliciosa interpretação levava-o sempre a cortar o finalzinho do aforismo.

Caso vivesse e escrevesse nos dias de hoje por estas bandas, cercado de leigos prontos para printar e transformar qualquer coisa em meme, zoeira e desinformação, Machadão certamente continuaria a evitar esse puto.

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